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Por uma Constituição global

Data: 16.02.1999

Por Celso Ribeiro Bastos e André Ramos Tavares
Advogado, professor de Direito Constitucional e Direito das Relações Econômicas Internacionais no Curso de Pós-graduação da PUC-SP, é direitor-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) Advogado, professor de Direito Constitucional, doutorando em Direito do Estado pela PUC-SP, é diretor de Estudos do IBDC.

O povo brasileiro vai sentir, em breve, a necessidade de uma nova carta

    Está-se assistindo hoje, inequivocadamente, a um processo de integração que não se confunde com o de globalização e do qual decorre o que se convencionou denominar Direito Comunitário. A integração está operando por meio de uma aproximação cultural, comercial e institucional dos Estados por ela alcançados, num processo em marcha irreversível.

    Rege-se tal fenômeno, do ponto de vista jurídico, pelo primado do Direito Comunitário sobre o Direito Interno. Isso decorre da delegação de poderes estatais soberanos à comunidade de Estados, que é dotada de organismos próprios, ou seja, de Parlamento, Justiça e governo comunitários, e independe, pois, dos critérios constitucionais dos Estados acerca da recepção do Direito Internacional tradicional em sua ordem jurídica interna. Direito Internacional e Direito Comunitário, como se percebe, são realidades ontologicamente díspares.

    Ao concretizarem a delegação de poderes em determinadas matérias, os Estados aceitam o primado do Direito Comunitário sobre tais assuntos. A aplicabilidade das normas comunitárias passa, nesse ponto, a atuar diretamente sobre os territórios dos Estados e seu povo, ou seja, elas não precisam ser submetidas a nenhum processo de aprovação ou ratificação pelo Estado membro.

    Seguramente, a mais bem-sucedida integração que ocorreu foi a União Européia, que desde a década de 50 vem palmilhando, de forma lenta, mas segura, o entrosamento recíproco entre os Estados envolvidos, até o ponto de possuírem uma moeda própria. E o governo já é exercido, no caso, por um poder análogo ao de uma federação.

    Pouco falta para que a própria União Européia passe a sobrepor-se aos Estados nacionais, da mesma maneira que a União, no Brasil ou em qualquer outro Estado federal, se sobrepõe aos Estados.

    Contudo, poucos foram os internacionalistas que se preocuparam em comensurar as perturbadoras vibrações que o desenvolvimento de um Direito Comunitário causa na estrutura basilar sobre a qual foram classicamente concebidas as Constituições nacionais de cada um dos Estados.

    No atual estágio, a fundamentação constitucional da integração política é ainda imprescindível, até mesmo para conferir legitimidade a esse processo. Dessa forma, na hipótese de as normas do Direito Comunitário conflitarem com as normas constitucionais estatais, o caso é solucionado -- como o foi inúmeras vezes na Europa, até o momento -- por meio de uma revisão constitucional.

    O Direito Comunitário, portanto, não é ainda Direito Constitucional supranacional. Falta, para isso, a principal característica de qualquer Estado, que é o poder de auto-organização, por meio do qual cada Estado elabora a sua própria Constituição, definindo suas atribuições e criando os seus órgãos com as respectivas competências.

    Mas, mesmo com a falta de previsão expressa das Constituições européias, como foi o caso da portuguesa, no que diz respeito à integração numa ordem comunitária, não foi esse um fator que criasse obstáculos à associação em nível comunitário. Isso permite inferir que, certamente, o mesmo ocorrerá quanto à formação de uma Constituição supranacional, que também poderia ser designada de Constituição comunitária, no caso.

    De outra parte, alguns autores, como o alemão Peter Häberle, analisando a evolução do Comunidade Econômica Européia, indicam um Direito Constitucional Comum Europeu. Esse Direito está composto pelos princípios constitucionais de cada Estado presentes em todos os ordenamentos constitucionais europeus, como democracia, proteção aos direitos humanos, meio ambiente, participação política e outros.

    Portanto, estamos em face de duas vias que convergem para um mesmo ponto. Tanto o fenômeno da integração regionl, que está solapando os poderes absolutos dos atuais Estados, quanto o fenômeno da globalização, que determina uma produção cultural -- e, pois, jurídica -- comum, indicam o surgimento, num horizonte não muito distante, de diplomas normativos supranacionais, como produtos de uma federação de Estados, e não de meros organismos internacionais, tal como ocorria até o momento.

    Os fundamentos do Estado, elaborados sobretudo a partir da Revolução Francesa, estão, a esta altura, em franco processo de transmutação. A Constituição federal nacional, em breve deixará de ocupar o ápice do sistema jurídico. Muitas das questões serão, a longo prazo, trasladadas para o âmbito de um Direito Planetário. A tendência é, pois, a de caminhar para a criação de uma Constituição supranacional e, posteriormente, mundial. Quanto à primeira, no âmbito europeu, talvez só falte mesmo a proclamação de uma unidade política.

    Mas, enquanto os países estão procurando integrar-se entre si, implementando um Direito Comum, que se sobrepõe ao Direito de cada país, o Brasil continua a ver o mundo através da lente minúscula de uma Constituição cheia de pormenores e que, evidentemente, não é adaptada para as mutações do mundo moderno.

    As dificuldades que se podem antecipar para o Brasil, em seu processo de integração, não são desprezíveis. A elevação do Direito Comunitário ao status de Direito Internacional exigirá profundas adaptações constitucionais no Direito brasileiro.

    Vale recordar que o Mercosul não passa de uma prematura união, cuja força jurídica é muito débil quando comparada ao Direito Comunitário.

    No momento, o Brasil só participa guiado pelo Direito Internacional e, por isso, tem sido possível conduzir essa integração seguindo o roteiro da Constituição com relação à internacionalização dos tratados internacionais. Acontece que qualquer passo mais profundo no sentido de integração demandará que se entre numa fase de harmonização das políticas, o que, para o Brasil, será uma tarefa praticamente impossível, pela dificuldade de alterar a Constituição. Ainda não ultrapassamos o estágio dos tratados internacionais multilaterais. Não contamos, pois, com nenhuma organização de caráter comunitário. Há um caminho muito longo a ser percorrido. O Brasil está somente numa união aduaneira, incompleta, e ao galgar as fases ulteriores, sobretudo na etapa das harmonizações da política, o Brasil teria de praticamente alterar toda a sua Constituição.

    A maioria de 3/5 exigida pela Constituição para sua emenda é excessiva quando se verifica tratar-se de um texto Constitucional que enfeixa todas as diretrizes da sociedade, em todos os campos de sua situação. Um quórum maior (de 2/3, como já tivemos), ou mesmo um tão elevado como o atual (de 3/5), só é possível dentro das Constituições sintéticas e abstratas, que cuidam apenas de questões que muito dificilmente se precisaria alterar.

    Isso torna a questão de uma gravidade ímpar, já que o século 21 se abre com a indicação de uma flexibilidade do Estado que pressuporá a mutação dos princípios tradicionais de sua própria Constituição, cujas competências e poderes serão trasladados para uma área comunitária ou, quiçá, planetária.

    O parágrafo único doa rtigo 4º da Constituição federal, único momento de atenção especial do constituinte para com a integração comunitária, é extremamente vago e insatisfatório, o que provocará acaloradas discussões. Basta atentar para a hipótese, não descartável, de que o Brasil tenha interesse em ligar-se ao Nafta, que não é uma comunidade latino-americana, com requer a Constituição.

    A necessidade de que sobrevenha uma nova Carta Constitucional, que possa dar conta das imposições que surgem como decorrência da complexidade do mundo atual, será sentida dentro em breve pelo povo brasileiro.